domingo, 31 de maio de 2009

O grande mentecapto

“Apesar da estrada, que ele já apanhou bastante mais movimentada e atraente, a infância de Geraldo Viramundo transcorreu como a de seus irmãos.Como seus irmãos ele comeu terra, botou lombrigas, arrebentou cupim para ver como era dentro, seguiu as formigas para ver aonde iam, misturou açúcar com sal no armazém, furtou garrafa de guaraná e depois mijou dentro botando no lugar para o pai não descobrir, brinco com fogo e mijou na cama, brincou de pegador, tic-tac carambola, este dentro e este fora, matou passarinho com bodoque, enterrou ovo choco e fez fogo em cima para ver se nascia pinto, foi mordido de marimbondo e ficou de cara inchada, amarrou lata vazia em rabo de gato, fez galinha dançar em cima de lata quente, contou com o ovo no rabo da galinha, enfiou o dedo no rabo dela, teve sarampo, catapora, caxumba e coqueluche, pegou sarna para se coçar, correu de boi bravo, botou cigarro na boca de sapo para ele fumar até rebentar, se
escondeu na cesta de roupa suja para ver a irmã mais velha tomar banho, quis pegar a irmã mais nova e depois teve remorso, perdeu a virgindade numa cabrita,fugiu de casa e apanhou e por isso tornou a fugir e por isso tornou a apanhar, construiu casinhas de barro, caiu da árvore e se machucou, comeu manga com leite e adoeceu, contou as estrelas do céu e ficou com berrugas, pegou carona em caminhão, aprendeu a ler na escola, fez do travesseiro o corpo da professora, teve medo do João Carangola que fugiu da prisão e gostava de menino, assobiou e chupou cana ao mesmo tempo, fumou cigarro de chuchu, fez coleção de favas, foi à missa aos domingos, assistiu fita de Tom Mix, Buck Jones e Carlito no cineminha da cidade, apanhou bicho-de-pé, pisou em urina de cavalo e ficou com mijação, armou arapuca no mato, jogou futebol com bola de meia, teve dor de dente de noite, foi coroinha na igreja, contou quantas vezes fazia coisa feia para se lembrar na confissão, procurou não mastigar a hóstia para que não saísse sangue, fez flautinha de bambu, ficou preso pela piroca num gargalo de garrafa, molhou o pijama de noite e teve medo de estar doente, ficou com pedra na maminha e perguntou à mãe o que era, se apaixonou pela filha mais velha dos italianos do empório, tirou o cavalinho da chuva, pensou na morte da bezerra, chorou escondido, teve medo, descobriu que o céu era imenso, teve vontade de morrer, ficou acordado de madrugada ouvindo o galo cantar sem saber onde, sentiu dores nos culhões, comeu a negra Adelaide e virou homem.”
(SABINO, Fernando.O Grande Mentecapto,1979. Pag 11)

2 comentários:

  1. Que beleza de prosa, Bea!

    Quanta infância, quanto sabor de brincadeiras saudáveis!

    Parabéns, pela bela escolha!

    Beijos

    Mirse

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  2. "[...] Sorri, oh voluptuosa terra fresca!
    Terra das árvores adormecidas e cintilantes!
    Terra do sol-posto - terra das montanhas cobertas de névoa!
    Terra do fluir vítreo da lua cheia e azul!
    Terra de luz e sombra derramadas sobre a maré do rio! Terra de límpidas nuvens pálidas resplandecendo para mim!
    Terra de braços arrebatados ao longe - rica terra de macieiras em flor!
    Sorri, que aí vem o teu amante.
    Pródiga, deste-me amor - e assim te dou amor!
    Oh, indizível e apaixonado amor."

    Como é bom ser criança, não? E crescer, crescer...vir crescendo!
    Gracioso "O Grande Mentecapto" do Sabino.
    O poema do Whitman...bom, é numa terra assim que os grandes e pequenos mentecaptos brincam. Quem sabe um dia não seremos deuses? Adorei o post.

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