sexta-feira, 18 de julho de 2008

São as águas de março...

Texto de Raquel de Queiroz
Última Hora 20/03/73
Águas de março
Disponível em TOM JOBIM - SITE OFICIAL

Tom Jobim escreveu e compôs o poema musical das Águas de Março, coisa bela e estranha, dura; fere o coração com um toque de pedra e depois o afoga na cheia das águas. Promete e recorda, memória de infância e angústias da força do homem. E até num velho pode suscitar nostalgias antigas.
Águas de Março; não sei se o sabia, Tom, são também para muita gente a última esperança. Equinócio de verão, dia de S. José, a derradeira oportunidade do inverno.
Vinte e um de março - a virada do verão, o equinócio. Mas o povo antes se fia no 19 de março, dia de S. José, o carpinteiro, que foi gente como nós e sabe o que é pobreza e insegurança.
Sim, Tom, tem lugares no mundo onde é a última oportunidade. Se não chover até ali, não chove mais; daí para diante, será por toda parte só o vento, o sol, a terra cizenta, a fome - se a gente quisesse repetir a batida de eco da sua enumeração poética.Este ano vem sendo o quinto em que não chove ou chove mal em muitas zonas do Nordeste. Salteado chove, aqui e ali, mas nunca regularmente e geral, nunca total e seguido nos meses certos, como devia ser. Se em 60 foi bom aqui, em 70 foi péssimo, nos outros foi fraquinho. E nos Inhamuns, por exemplo, foi ruim emendado, o tempo todo. A mesma história se conta nas margens do S. Francisco, no sertão inteiro de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará. E esses anos magros de estiagem, juntando-os todos, vêm a ser pior do que uma seca completa e corrida, de dezembro a dezembro. Pois a seca vindo de repente, embora total, encontra as reservas dos anos bons, açudes cheios, gado sadio, algum resto de legume e farinha nos paióis. E o povo resiste bem, sabendo que é só aquele ano; trinca os dentes e agüenta - afinal é uma penitência.
Mas depois que apareceu a seca verde, é diferente e pior. Chove um pouco em janeiro ou fevereiro. Nasce a rama, a terra se enfeita, os jornais dão notícia. O povo planta. E aí recomeça o verão. Com o verão, vem a largata, come toda folha nova. Então o povo replanta. Em alguns lugares o legume nasce, em outros nem chega a nascer, porque o inverno parou. Só uns barrufos de chuva, de longe em longe, que não dão para umedecer o chão de novo estorricado e só servem para desmentir quem fala em seca.Com os anos seguidos de inverno escasso, os açudes baixaram, cada falso inverno perdendo mais do que recuperando. Afinal veio 72, e tudo secou de vez. O leito da água evaporada ficou no barro, lascou, empedrou. O peixe, que era um dos recursos do povo, morreu todo. Reserva de nada não há mais nenhuma. Até a água dos grandes açudes do governo fica grossa, baldeada. O gado é uma ameaça, descarnado e triste.
E o povo, que vai ser dele? Voltar à amargura, ao vexame das frentes de serviço, trabalhos de caridade que as máquinas fariam muito melhor? Só Deus sabe - Deus e S. José no seu dia, 19 de março. O qual, quando estas linhas sairem à rua, já se terá passado - e então se saberá definitivo se é hora de sorrir ou de chorar.

3 comentários:

  1. parabens pelo post, parabens pelo seu blog, tudo muito bom aqui.
    Gostei, vai virar mania voltar
    Maurizio

    ResponderExcluir
  2. Parabéns pelo bom gosto.

    Seu blog está expetacular!

    ResponderExcluir
  3. parabeens por tudo akiee
    ameei mesmo ese post
    xd
    http://imensidadx3.blogspot.com

    ResponderExcluir